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Introdução ao Cristianismo: O Conhecimento de Deus (III)

crossEste estudo faz parte da série“Introdução ao Cristianismo”. Para o melhor aproveitamento, é aconselhável que o leitor cheque e medite em todas as referências bíblicas de cada artigo da Confissão Belga antes de começar ler o estudo baseado naquele artigo.
ARTIGO 2
COMO CONHECEMOS A DEUS

Nós O conhecemos por dois meios. Primeiro: pela criação, manutenção e governo do mundo inteiro, visto que o mundo, perante nossos olhos, é como um livro formoso [1], em que todas as criaturas, grandes e pequenas, servem de letras que nos fazem contemplar “os atributos invisíveis de Deus”, isto é, “o seu eterno poder e a sua divindade”, como diz o apóstolo Paulo (Romanos 1:20. Todos estes atributos são suficientes para convencer os homens e torná-los indesculpáveis.
Segundo: Deus se fez conhecer, ainda mais clara e plenamente, por sua sagrada e divina Palavra [2], isto é, tanto quanto nos é necessário nesta vida, para sua glória e para a salvação dos que Lhe pertencem.
1 Sl 19:1-4. 2 Sl 19:7,8; 1Co 1:18-21.
Na primeira parte de deste estudo falamos sobre o que o conhecimento de Deus significa e que o homem obtém este conhecimento por dois meios: a revelação geral e revelação especial. Na segunda parte falamos sobre o significado da revelação geral. Falaremos agora sobre o significado darevelação especial.
PARA QUE ALGUÉM CHEGUE A DEUS O CRIADOR É NECESSÁRIO QUE A ESCRITURA SEJA SEU GUIA E MESTRA
Por João Calvino
Portanto, ainda que esse fulgor, que aos olhos de todos se projeta no céu e na terra, mais que suficientemente despoje de todo fundamento a ingratidão dos homens, serve também para envolver o gênero humano na mesma incriminação. Deus a todos, sem exceção, exibe sua divina majestade debuxada nas criaturas, contudo é necessário adicionar outro e melhor recurso que nos dirija retamente ao próprio Criador do universo. Portanto, Deus não acrescenta em vão a luz de sua Palavra para que a salvação se fizesse conhecida. E considerou dignos deste privilégio aqueles a quem quis atrair para mais perto e mais íntimo.
Ora, visto que ele via a mente de todos ser arrastada para cá e para lá em agitação errática e instável, depois que elegeu os judeus para si por povo peculiar, cercou-os de sebes, de todos os lados, para que não se extraviassem à maneira dos demais. Nem em vão nos retém ele, mediante o mesmo remédio, no puro conhecimento de si mesmo; pois, de outra sorte, bem depressa se diluiriam até mesmo aqueles que, acima dos demais, parecem manter-se firmes. Exatamente como se dá com pessoas idosas, ou enfermas dos olhos, e tantos quantos sofram de visão embaçada, se puseres diante delas mesmo um vistoso volume, ainda que reconheçam ser algo escrito, contudo mal poderão ajuntar duas palavras; ajudadas, porém, pela interposição de lentes, começarão a ler de forma distinta. Assim a Escritura, coletando-nos na mente conhecimento de Deus que de outra sorte seria confuso, dissipada a escuridão, nos mostra em diáfana clareza o Deus verdadeiro.
É esta, portanto, uma dádiva singular, quando, para instruir a Igreja, Deus não apenas se serve de mestres mudos, mas ainda abre seus sacrossantos lábios, não simplesmente para proclamar que se deve adorar a um Deus, mas ao mesmo tempo declara ser esse Aquele a quem se deve adorar; nem meramente ensina aos eleitos a atentarem para Deus, mas ainda se mostra como Aquele para quem devem atentar. Ele tem mantido esse proceder para com sua Igreja desde o princípio, para que, afora essas evidências comuns, também aplicasse a Palavra, a qual é a mais direta e segura marca para reconhecê-lo.
Não carece de dúvida que Adão, Noé, Abraão e os demais patriarcas tenham, mercê deste recurso, atingido íntimo conhecimento dele, o qual, de certo modo, os distinguia dos incrédulos. Não estou ainda falando da doutrina apropriada pela fé pela qual foram iluminados para a esperança da vida eterna. Ora, para que passassem da morte para a vida, foi-lhes necessário conhecer a Deus não apenas como Criador, mas ainda como Redentor, de sorte que chegaram seguramente a um e outro desses dois conceitos à base da Palavra.
Ora, na ordem, veio primeiro aquela modalidade de conhecimento mediante o qual fora dado alcançar quem é esse Deus por quem o mundo foi criado e é governado. Acrescentou-se depois a outra, interior, a única que vivifica as almas mortais, por meio da qual se conhece a Deus não apenas como Criador do universo e único Autor e Árbitro de todas as coisas que existem, mas ainda, na pessoa do Mediador, como Redentor. Entretanto, visto que ainda não chegamos à queda do mundo e à corrupção da natureza, deixo também de tratar de seu remédio.
Portanto, os leitores se lembrarão de que ainda não irei fazer considerações a respeito daquele pacto mediante o qual Deus adotou para si os filhos de Abraão, bem como daquela parte da doutrina por meio da qual os fiéis sempre foram devidamente separados das pessoas profanas, pois que ele se fundamentou em Cristo, doutrina essa que será abordada na seção cristológica, mas somente enfocarei como se deve aprender da Escritura que Deus, que é o Criador do mundo, se distingue, por marcas seguras, de toda a multidão forjada de deuses. Oportunamente, mais adiante, a própria seqüência nos conduzirá à Redenção. Mas, embora tenhamos de derivar do Novo Testamento muitos testemunhos, outros também da lei e dos profetas, onde se faz expressa menção de Cristo, contudo todos tendem a este fim: que Deus, o Artífice do universo, se nos patenteia na Escritura; e o que dele se deva pensar, nela se expõe, para que não busquemos por veredas ambíguas alguma deidade incerta.
Contudo, seja porque Deus se fez conhecido aos patriarcas através de oráculos e visões, seja porque, mediante a obra e ministério de homens, ele deu a conhecer o que depois, pelas próprias mãos, houvessem de transmitir aos pósteros, porém está fora de dúvida que a firme certeza da doutrina foi gravada em seu coração, de sorte que fossem persuadidos e compreendessem que o que haviam aprendido procedera de Deus. Pois, através de sua Palavra, Deus fez para sempre com que a fé não fosse dúbia, fé esta que houvesse de ser superior a toda mera opinião. Por fim, para que em perpétua continuidade de doutrina, a sobreviver por todos os séculos, a verdade permanecesse no mundo, esses mesmos oráculos que depositara com os patriarcas ele quis que fossem registrados como que em instrumentos públicos. Neste propósito, a lei foi promulgada, a qual mais tarde os profetas foram acrescentados como intérpretes.
Ora, visto que o uso da lei foi múltiplo, como se verá melhor no devido lugar, na verdade foi especialmente outorgada a Moisés e a todos os profetas a incumbência de ensinar o modo de reconciliação entre Deus e os homens, donde também Paulo chama Cristo o fim da lei (Rm 10.4). Contudo, outra vez o reitero, além da doutrina apropriada da fé e do arrependimento, que apresenta Cristo como o Mediador, a Escritura adorna de marcas e sinais inconfundíveis ao Deus único e verdadeiro, porquanto criou o mundo e o governa, para que ele não se misture com a espúria multidão de divindades.
Portanto, por mais que ao homem, com sério propósito, convenha volver os olhos a considerar as obras de Deus, uma vez que foi colocado neste esplendíssimo teatro para que fosse seu espectador, todavia, para que fruísse maior proveito, convém-lhe, sobretudo, inclinar os ouvidos à Palavra. E por isso não é de admirar que, mais e mais, em sua insensibilidade se façam empedernidos aqueles que nasceram nas trevas, porquanto pouquíssimos se curvam dóceis à Palavra de Deus, de sorte que se contenham dentro de seus limites; ao contrário, antes exultam em sua futilidade.
Mas, para que nos reluza a verdadeira religião, é preciso considerar isto: que ela tenha a doutrina celeste como seu ponto de partida; nem pode alguém provar sequer o mais leve gosto da reta e sã doutrina, a não ser aquele que se faz discípulo da Escritura. Donde também provém o princípio do verdadeiro entendimento: quando abraçamos reverentemente o que Deus quis testificar nela acerca de si mesmo. Ora, não só a fé consumada, ou completada em todos os seus aspectos, mas ainda todo reto conhecimento de Deus nascem da obediência à Palavra. E, fora de toda dúvida, neste aspecto, com singular providência, Deus em todos os tempos teve em consideração os mortais.
Com efeito, se refletirmos bem quão acentuada é a tendência da mente humana para com o esquecimento de Deus; quão grande sua inclinação para com toda sorte de erro; quão pronunciado o gosto de a cada instante forjar novas e fantasiosas religiões, poder-se-á perceber quão necessária foi tal autenticação escrita da doutrina celestial, para que não desvanecesse pelo ouvido, ou se dissipasse pelo erro, ou fosse corrompida pela petulância dos homens.
Como sobejamente assim se evidencia, Deus proveu o subsídio da Palavra a todos aqueles a quem quis, a qualquer tempo, instruir eficientemente, porque antevia ser pouco eficaz sua efígie impressa na formosíssima estrutura do universo. Portanto, necessário se nos faz trilhar por esta reta vereda, caso aspiremos, com seriedade, à genuína contemplação de Deus.
Afirmo que importa achegar-se à Palavra onde, de modo real e ao vivo, Deus nos é descrito em função de suas obras, enquanto essas próprias obras aí se apreciam, não conforme a depravação de nosso julgar, mas segundo a norma da verdade eterna. Se dela nos desviamos, como há pouco frisei, ainda que nos esforcemos com extrema celeridade, entretanto, uma vez que a corrida será fora da pista, jamais conseguirá ela atingir a meta. Pois assim se deve pensar: o resplendor da face divina, o qual o Apóstolo proclama ser inacessível [1Tm 6.16], nos é inextricável labirinto, a não ser que pelo Senhor sejamos dirigidos através dele pelo fio da Palavra, visto ser preferível claudicar ao longo desta vereda a correr a toda brida fora dela.
Assim é que, não poucas vezes [Sl 93, 96, 97, 99 e afins], ensinando que importa alijar do mundo as superstições para que floresça a religião pura, Davi representa Deus a reinar, significando pelo termo reinar não o poder do qual Deus se acha investido e o qual exerce no governo universal da natureza, mas a doutrina pela qual para si reivindica soberania legítima, porquanto os erros jamais podem ser arrancados do coração humano, enquanto não for nele implantado o verdadeiro conhecimento de Deus.
Por isso, o mesmo Profeta, onde trouxe à lembrança que a glória de Deus é proclamada pelos céus, que as obras de suas mãos são anunciadas pelo firmamento, que sua majestade é apregoada pela seqüência regular dos dias e das noites [Sl 19.1,2], em seguida desce à menção da Palavra: “A lei do Senhor” diz ele, “é sem defeito, reanimando as almas; o testemunho do Senhor é fiel, dando sabedoria aos pequeninos; os atos de justiça do Senhor são retos, alegrando os corações; o preceito do Senhor é límpido, iluminando os olhos” [Sl 19.7, 8]. Ora, embora ele inclua ainda outros usos da lei, contudo assinala, de modo geral, porquanto em vão Deus convida a si a todos os povos pela contemplação do céu e da terra, afirmando que esta é a escola especial dos filhos de Deus: a Escritura.
Idêntica é a perspectiva do Salmo 29, no qual o Profeta, após discursar a respeito da voz terrível de Deus, a qual sacode a terra com trovões, ventanias, chuvas, furacões e tempestades, faz tremer as montanhas, despedaça os cedros, contudo no final acrescenta que seus louvores são entoados no santuário, porquanto os incrédulos são surdos a todas as vozes de Deus que ressoam nos ares. De igual modo, assim ele conclui em outro dos Salmos, onde descreveu as ondas espantosas do mar: “Mui fiéis são teus testemunhos; a santidade convém a tua casa, para sempre” [Sl 93.5] Daqui também promana aquilo que Cristo dizia à mulher samaritana [Jo 4.22]: que seu povo e todos os demais povos adoravam o
que desconheciam; e que somente os judeus exibiam o culto verdadeiro de Deus.
Ora, já que, em razão de sua obtusidade, de modo algum a mente humana pode chegar a Deus, salvo se for assistida e sustentada por sua Santa Palavra, então todos os mortais – excetuados os judeus –, visto que buscavam a Deus sem a Palavra, lhes foi inevitável que vagassem na futilidade e no erro”.

Fonte: João Calvino, Institutas da Religião Cristão, Livro I

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